Jogue Fora as Ferramentas do Mestre: Libertando-nos do Paradigma da Patologia

Autor: Nick Walker

Jogue Fora as Ferramentas do Mestre: Libertando-nos do Paradigma da Patologia
16 de agosto de 2013

Esta peça é uma versão revisada de um ensaio para o qual contribuí, para a inovadora antologia Mãos Sonoras: Pessoas Autistas, Falando, publicado em 2012.
Embora o termo neurodiversidade tenha sido originalmente desenvolvido dentro da comunidade autista, o paradigma da neurodiversidade não é sobre o autismo exclusivamente, mas sobre todo o espectro de variação cognitiva humana. Este ensaio particular, no entanto, foi construído principalmente para leitores autistas, e, em sua discussão das implicações da mudança de paradigmas acerca da neurodiversidade, o texto é muito focado em autismo, pois esse era o foco da antologia para o qual foi originalmente escrito.
Quando se trata de neurodiversidade humana, o paradigma dominante no mundo atual é o que me refiro como o paradigma patológico. A longo prazo, o bem-estar e capacitação dos autistas e membros de outros grupos minoritários neurológicos depende da nossa capacidade para criar uma mudança de paradigma - uma mudança do paradigma patológico para o paradigma da neurodiversidade. Tal mudança deve acontecer internamente, dentro da consciência dos indivíduos, e também deve ser propagada nas diferentes culturas nas quais vivemos.
Então, o que toda essa conversa extravagante quer dizer? Quais são esses paradigmas de que falo, e o que significa fazer uma "mudança" de um paradigma para outro? Esta peça é uma tentativa de explicar essas indagações, em linguagem simples que eu espero que torne estes conceitos algo facilmente acessível de entender.

O que é um paradigma e, o que é uma mudança de paradigma?

Mesmo que você ainda não tenha o encontrado em um contexto acadêmico, provavelmente você já ouviu o termo “paradigma” antes, porque é irritantemente utilizado em excesso por comerciantes corporativos para descrever quaisquer novos desenvolvimentos, a fim de incitar as pessoas sobre produtos: Um novo paradigma em tecnologia sem-fio! Um novo paradigma hiperbólico nas vendas!
Como um grande diplomata espanhol uma vez disse, eu não acho que isso significa o que eles pensam que isso significa.
Um paradigma não é apenas uma idéia ou um método. Um paradigma é um conjunto de princípios ou pressupostos fundamentais, uma mentalidade ou quadro de referência que molda a maneira como se pensa e fala sobre um determinado assunto. Um paradigma molda as formas em que se interpreta a informação, e determina que tipo de perguntas são questionadas e de que forma elas são questionadas. Um paradigma é uma lente através da qual se vê a realidade.
Talvez o exemplo mais simples e bem conhecido de uma mudança de paradigma venha da história da astronomia: a mudança do paradigma geocêntrico (que assume que o Sol e os planetas giram em torno da Terra) para o paradigma heliocêntrico (Terra e vários outros planetas giram em torno do Sol). No momento em que esta mudança começou, muitas gerações de astrônomos já tinham gravado extensas observações sobre os movimentos dos planetas. Mas agora todos os seus cálculos significavam algo diferente. Toda a informação tinha de ser reinterpretada sob uma perspectiva totalmente nova. Não eram apenas as mesmas perguntas que tiveram novas respostas - as próprias perguntas eram diferentes. Perguntas como "Qual é o caminho da órbita de Mercúrio em torno da Terra?" deixaram de ser algo importante para ser uma bobagem pura e simples, enquanto que outras questões, que nunca tinham sido feitas porque pareceriam absurdas sob o antigo paradigma, de repente tornaram-se perguntas significativas.
Isso é uma verdadeira mudança de paradigma: uma mudança em nossas premissas fundamentais; uma mudança radical de perspectiva que nos obriga a redefinir os nossos termos, recalibrar a nossa língua, reformular nossas perguntas, reinterpretar os nossos dados, e repensar completamente os nossos conceitos básicos e abordagens.

O Paradigma Patológico

Um paradigma muitas vezes pode ser resumido a alguns princípios gerais e básicos, embora esses princípios tendam a ser muito abrangentes em suas implicações e consequências. Os princípios de um paradigma sociocultural amplamente dominante, como o paradigma patológico, geralmente tomam a forma de presunções - isto é, eles são tão amplamente tidos como certos que a maioria das pessoas nunca reflete ou articula sobre eles de forma independente e conscientemente (e às vezes pode ser uma revelação perturbante ouvi-los claramente articulados).
O paradigma patológico, em última análise, resume-se a apenas dois pressupostos fundamentais:
1-) Há um único caminho "certo", "normal", ou "saudável" dos cérebros e mentes humanas serem configurados e funcionarem (ou uma relativamente estreita "saudável gama normal" na qual a configuração e o funcionamento dos cérebros humanos e mentes devem se adequar).
2-) Se a sua configuração e funcionamento neurológicos (e, como resultado, suas maneiras de pensar e de agir) divergem substancialmente do padrão dominante de "normal", então Há Algo de Errado com Você.
São estes dois pressupostos que definem o paradigma patológico. Diferentes grupos e indivíduos debruçam-se sobre estas suposições de maneiras muito diferentes, com diferentes graus de racionalidade, absurdismo, medo ou compaixão - mas enquanto eles compartilham esses dois pressupostos básicos, eles ainda estão operando dentro do paradigma patológico (assim como os antigos astrônomos Maias e os astrônomos islâmicos do 13º século tinham concepções vastamente divergentes e  sobre o cosmo, mas ambos operavam dentro do paradigma geocêntrico).
O estabelecimento psiquiátrico que classifica o autismo como uma "desordem"; as instituições que pregam "caridade para autistas", mas que consideram o autismo uma "crise de saúde global"; pesquisadores do autismo que continuam trazendo novas teorias de “origem da doença”; fundamentalistas ortodoxos cientificamente analfabetos que acreditam que o autismo é uma forma de "envenenamento"; qualquer um que fala de autismo utilizando linguagem medicalizada, como por exemplo: "sintoma", "tratamento" ou "epidemia"; a mãe que pensa que a melhor maneira de ajudar seu filho autista é submetê-lo a "intervenções" comportamentalistas e destina-se a treiná-lo a agir como uma criança "normal"; a celebridade autista "inspiradora" que aconselha outros autistas que o segredo para o sucesso é se esforçar mais para estar em conformidade com as exigências sociais de pessoas não-autistas... ...Todos esses grupos e indivíduos estão operando dentro do paradigma patológico, independentemente de suas intenções ou o quanto eles podem discordar uns com os outros em vários pontos.

O Paradigma Neurodiverso

Eis aqui como eu articulo os princípios fundamentais do paradigma da neurodiversidade:
1-) Neurodiversidade - a diversidade de cérebros e mentes - é uma ocorrência natural, saudável e também uma característica valiosa para a diversidade humana.
2-) Não há um modelo "normal" ou "certo" do cérebro humano ou da mente humana, mais do que há um "normal" ou "certo" para as singularidades presentes em etnias, gêneros ou culturas.
3-) As dinâmicas sociais que se manifestam em relação a neurodiversidade são semelhantes às dinâmicas sociais que se manifestam em relação a outras formas de diversidade humana (por exemplo, a diversidade de raça, cultura, gênero ou orientação sexual). Estas práticas envolvem a dinâmica das relações sociais de poder - a dinâmica da desigualdade social, privilégio e opressão -, bem como a dinâmica pela qual a diversidade, quando abraçada em sua essência, age como uma fonte de potencial criativo dentro de um grupo ou sociedade.

As Ferramentas do Mestre Nunca Desmontarão a Casa do Mestre

Em uma conferência feminista internacional em 1979, a poeta Audre Lorde proferiu um discurso intitulado "As Ferramentas do Mestre Nunca Desmontarão a Casa do Mestre". Nesse discurso, Lorde, uma lésbica negra advinda de uma família de classe trabalhadora imigrante, criticou de forma severa sua audiência quase que inteiramente branca e afluente, pelo fato de que eles permanecem enraizando e continuam a propagar a dinâmica fundamental do patriarcado: hierarquia, exclusão, racismo, classismo homofobia, esquecimento de privilégio, o fracasso em abraçar a diversidade. Lorde reconheceu o sexismo como sendo parte de um paradigma mais amplo e profundamente enraizado que lidava com todas as formas de diferença através do estabelecimento de hierarquias de dominância, e ela percebeu que uma verdadeira libertação difundida seria impossível enquanto as feministas continuassem a operar dentro deste paradigma.
"O que significa," Lorde disse, "quando as ferramentas de um patriarcado racista são utilizadas para examinar os frutos desse mesmo patriarcado? Isso significa que apenas os perímetros mais estreitos de mudança são possíveis e permitidos. [...] Pois as ferramentas do mestre nunca irão desmantelar a casa do mestre. Elas podem permitir-nos temporariamente vencê-lo em seu próprio jogo, mas elas nunca vão permitir-nos  trazer uma mudança completa e genuína. "
As ferramentas do mestre nunca vão desmontar a casa do mestre. Trabalhar dentro de um sistema e jogar pelas suas regras inevitavelmente reforça esse sistema, seja ou não essa a sua intenção. Não só as ferramentas do mestre nunca servirão para desmantelar a casa do mestre, mas em qualquer momento que você tentar usar as ferramentas do mestre para qualquer coisa, você de alguma forma acaba construindo outra extensão daquela maldita casa.
O aviso de Lorde se aplica igualmente bem, hoje, para a comunidade autista e nossa luta pela emancipação. A suposição de que há Algo Errado Conosco é inerentemente incapacitante, e essa suposição é absolutamente intrínseca ao paradigma patológico. Assim, as "ferramentas" do paradigma da patologia (e refiro-me todas as estratégias, metas ou maneiras de falar ou pensar que explicita ou implicitamente compram as suposições do paradigma da patologia) nunca irá nos empoderar a longo prazo. O empoderamento difundido, genuíno e duradouro para Autistas só pode ser alcançado através de fazer e propagar a mudança do paradigma de patologia ao paradigma neurodiversidade. Devemos jogar fora as ferramentas do mestre.

A Linguagem Patológica vs. a Linguagem da Diversidade

Devido ao fato de que o paradigma da patologia tem sido dominante por algum tempo, muitas pessoas, inclusive muitos que clamam defender o empoderamento das pessoas autistas, ainda habitualmente utilizam a linguagem que é baseada nos pressupostos deste paradigma. A mudança do paradigma patológico ao paradigma da neurodiversidade exige uma mudança radical na linguagem, porque a linguagem apropriada para a discussão de problemas médicos é bastante diferente do idioma apropriado para discutir a diversidade. A questão da "linguagem de primeira pessoa" é um bom exemplo básico para começar.
Se uma pessoa tem uma condição médica, podemos dizer que "ela tem câncer", ou ela é "uma pessoa com alergias", ou ainda que "ela sofre de úlceras." Mas quando uma pessoa é um membro de um grupo minoritário, nós não falamos sobre sua condição de minoria como se fosse uma doença. Nós dizemos "ela é negra", ou "ela é lésbica." Nós reconhecemos que seria escandalosamente inadequado - e, possivelmente nos marcaria  como ignorantes ou intolerantes - se tivéssemos de se referir a uma pessoa negra como "ter negrismo" ou ser uma "pessoa com negrismo", ou se tivéssemos de dizer que alguém "sofre de homossexualidade."
Então, se nós usamos frases como "pessoa com autismo", ou "ela tem autismo", ou "famílias afetadas pelo autismo," estamos usando a linguagem do paradigma patológico - linguagem que implicitamente aceita e reforça a suposição de que o autismo é intrinsecamente um problema, um Algo-Errado-Com-Você. Na linguagem do paradigma neurodiverso, por outro lado, falamos de neurodiversidade da mesma forma que falaríamos da diversidade étnica ou sexual, e falamos de autistas da mesma forma que falaríamos de qualquer grupo minoritário social: Eu sou autista. Eu sou um autista. Eu sou uma pessoa autista. Há pessoas autistas na minha família.
Estas distinções lingüísticas podem parecer triviais, mas a nossa língua desempenha um papel fundamental na formação de nossos pensamentos, nossas percepções, nossas culturas e nossas realidades. Em longo prazo, o tipo de linguagem utilizada para falar sobre autistas tem enorme influência sobre como a sociedade nos trata, e sobre as mensagens que internalizam sobre nós mesmos. Descrever-nos em linguagem que reforça o paradigma patológico é usar ferramentas do mestre, na metáfora de Audre Lorde, e, portanto, nos aprisiona mais profundamente na casa do mestre.

Eu não acredito em pessoas normais

O conceito de um "cérebro normal" ou de uma "pessoa normal" não tem mais validade científica objetiva – e não serve a nenhum propósito melhor – do que o conceito de uma “raça superior”. De todas as ferramentas do mestre (ou seja, a dinâmica, a língua e marcos conceituais que criam e mantêm as desigualdades sociais), o mais poderoso e insidioso é o conceito de "pessoas normais". No contexto da diversidade humana (étnica, cultural, sexual, neurológica, ou qualquer outro tipo), tratar um grupo em particular como "normal" ou estabelecê-lo como por padrão inevitavelmente serve para privilegiar esse grupo e para marginalizar aqueles que não pertencem a esse grupo.
A dúbia presunção de que há tal coisa como uma "pessoa normal" está no cerne do paradigma patológico. O paradigma da neurodiversidade, por outro lado, não reconhece "normal" como um conceito válido quando se trata de diversidade humana.
A razoável maioria de pessoas politizadas atualmente já reconhece que o conceito de "normal" é absurdo e sem sentido no contexto da diversidade racial, étnica ou cultural. Os Chineses Han constituem o maior grupo étnico no mundo, mas seria ridículo afirmar que isso faz com que os Chineses Han sejam "naturais" ou o "padrão" da etnia humana. O fato de que um ser humano, se selecionado aleatoriamente, é estatisticamente muito mais propenso a ser um Chinês Han do que um Irlandês não faz um Chinês Han mais "normal" do que um Irlandês (ou qualquer outra coisa que isso deixe subentendido).
O tipo mais insidioso da desigualdade social, o tipo mais difícil de privilégio para desafiar, ocorre quando um grupo dominante está tão profundamente estabelecido como o grupo "padrão" ou “normal” que este grupo hegemônico acaba não recebendo uma nomenclatura específica de identificação. Os membros desse grupo são simplesmente tidos como "pessoas normais", "pessoas saudáveis", ou apenas "pessoas" - com a implicação de que aqueles que não são membros desse grupo representam desvios do que é normal e natural, ao invés de manifestações igualmente naturais e legítimas da diversidade humana.
Por exemplo, considere as conotações da afirmação "as pessoas homossexuais querem os mesmos direitos que os heterossexuais," versus as conotações da afirmação "as pessoas homossexuais querem os mesmos direitos que as pessoas normais." O simples ato de substituir a palavra normal para heterossexual mostra que esta segunda declaração implicitamente aceita e reforça a existência do privilégio heterossexual e relega as pessoas gays a um status inferior, "anormal".
Agora imagine se termos como heterossexual e hetero não existissem. Isso colocaria ativistas dos direitos gays na posição de ter de dizer coisas como "Nós queremos os mesmos direitos que as pessoas normais" - linguagem que reforça seus conceitos ortodoxos e marginais, estigmatiza o status determinado como "anormal" e, assim, debilita a nossa luta. Estes ativistas ficariam presos utilizando as ferramentas do mestre – neste caso, a nomenclatura. Se termos como heterossexual e hetero não existissem, seria necessário que os ativistas dos direitos dos homossexuais criassem uma nova terminologia inclusiva.
É por isso que um passo inicial fundamental no movimento da neurodiversidade foi a cunhagem do termo neurotípico. O Neurotípico está para o Autista assim como o Hetero está para o gay. A existência da palavra neurotípico torna possível ter conversas sobre temas, como por exemplo, o privilégio neurotípico. Neurotípico é uma palavra que nos permite falar sobre os membros do grupo neurológico dominante sem reforçar implicitamente a posição privilegiada deste grupo (e, por consequência, nossa própria marginalização), referindo-se a eles como "pessoas normais". A palavra normal, usada para privilegiar um grupo coletivo em detrimento da marginalização de outros, é uma das ferramentas do mestre, enquanto a palavra neurotípico é uma das nossas ferramentas – uma ferramenta que podemos utilizar ao invés da ferramenta do mestre; é uma ferramenta que pode nos ajudar a desmontar a casa do mestre.

O Vocabulário da Neurodiversidade

A palavra neurotípico é uma peça essencial do novo vocabulário da neurodiversidade que está começando a emergir - que precisa emergir, se quisermos nos libertar da linguagem e nomenclatura incapacitantes do paradigma patológico, para que possamos então propagar com sucesso o paradigma da neurodiversidade em nosso próprio pensamento e também na esfera do discurso público.
A própria palavra neurodiversidade é, naturalmente, a parte mais essencial deste novo vocabulário. A essência de todo o paradigma - o entendimento de variação neurológica como uma forma natural da diversidade humana, sujeita às mesmas dinâmicas sociais como outras formas de diversidade – todo este conceito está compactado nesta única palavra.
Outra palavra útil é neurominoria. Pessoas neurotípicas compõem a maioria; enquanto as pessoas autistas, disléxicas e bipolares são todos exemplos de pessoas neurominoritárias. Eu gostaria de ver esta terminologia entrar em um uso mais generalizado, porque há uma necessidade para ela; há uma série de temas no discurso sobre neurodiversidade que são muito mais fáceis para falar sobre quando se tem uma boa palavra não-patológica para referir-se aos vários grupos de pessoas que não são neurotípicas.
Termos como neurodiversidade, neurotípico, e neurominoria nos permitem falar e pensar sobre a neurodiversidade de uma maneira que não implique na patologização dos indivíduos que compõe esta comunidade de neurominorias. Ao cultivarmos a comunidade autista e interagirmos com outras comunidades de neurominorias, e à medida que continuamos a gerar um legado escrito e levantarmos discussões sobre questões de relevância para nós, mais novos tipos linguagem e nomenclaturas surgirão gradualmente. Atualmente, nós já geramos termos como stim e mãos sonoras para descrever aspectos importantes da experiência autista. E no meu próprio trabalho acadêmico, meus estudos de competência inter-cultural (a capacidade de interagir e comunicar-se habilmente com pessoas de várias culturas) levaram-me a começar a usar os termos de competências inter-neurotípicas e neurocosmopolitanas, termos e conceitos que espero se difundam amplamente.
É também de minha vontade e esperança que os termos paradigma patológico e paradigma neurodiverso propaguem-se em uso generalizado. Em uma questão de clareza, é útil fazer a distinção entre neurodiversidade (o fenômeno da diversidade neurológica humana) e o paradigma da neurodiversidade (a compreensão da neurodiversidade como uma forma natural da diversidade e heterogeneidade humana, sujeita às mesmas dinâmicas sociais como outras formas de diversidade). E ter um nome para o paradigma da patologia torna esse paradigma muito mais fácil de tratar, reconhecer, desafiar e desconstruir - e eventualmente desmontar.
As palavras são ferramentas. E, como nós reconhecemos que as ferramentas do mestre nunca vão desmontar a casa do mestre, estamos criando nossas próprias ferramentas, que podem ajudar-nos não só para desmantelar a casa do mestre, mas também construir uma nova casa em que possamos viver melhor, com vidas mais dignas e de forma empoderada.

Campos Minados em Sua Cabeça

Quebra meu coração quando muitas das pessoas autistas que encontro falam de si mesmas e pensam sobre si mesmas dentro da linguagem do paradigma patológico, e como eu observo o quanto isso as enfraquece e as mantêm sentindo-se mal sobre si mesmas. Elas passaram a vida ouvindo as mensagens tóxicas espalhadas pelos defensores do paradigma patológico, e eles já aceitaram e internalizaram essas mensagens e agora infinitamente repetem-nas em suas próprias cabeças.
Quando reconhecemos que as lutas das neurominorias seguem amplamente a mesma dinâmica que as lutas de outros tipos de grupos minoritários, reconhecemos essa conversa auto-patologizante como uma manifestação de um problema que tem atormentado membros de vários grupos minoritários – um fenômeno chamado de opressão internalizada.
Uma contemporânea de Audre Lorde, a jornalista feminista Sally Kempton, teve isto a dizer sobre a opressão internalizada: "É difícil lutar contra um inimigo que mantém campos minados em sua cabeça."
A tarefa de libertarmo-nos da casa do mestre começa com a desmontagem das partes dessa casa que foram construídas dentro de nossas próprias cabeças. E esse processo começa ao jogar fora as ferramentas do mestre, para que possamos parar de inadvertidamente construir a mesma coisa que estamos tentando desmantelar.

Jogando fora de Ferramentas do Mestre

Uma vez que reconhecemos que a base do paradigma patológico – o conceito fictício de "pessoas normais" – é um elemento fundamental do conjunto de ferramentas do mestre, torna-se muito mais fácil de identificar e livrarmo-nos das ferramentas do mestre. Tudo o que precisamos fazer é mediar cuidadosamente nossas palavras, conceitos, pensamentos, crenças e preocupações, e ver se eles ainda fazem sentido se jogarmos fora o conceito de "normal", o conceito de que há um caminho "certo" para o funcionamento de cérebros e mentes das pessoas.
Assim que jogarmos fora o conceito de "normal", pessoas neurotípicas são apenas membros de uma maioria - não são mais saudáveis ​​ou mais "certos" do que o resto de nós, apenas mais comuns e recorrentes. E pessoas autistas fazem parte de um grupo minoritário, não mais intrinsecamente "transtornados" do que qualquer minoria étnica, por exemplo. Quando percebemos que "normal" é apenas uma estrutura aprisionadora confeccionada por uma maioria de pessoas, quando nós reconhecermos isto como uma das ferramentas do mestre e lançarmos estes conceitos retrógrados para fora da janela, a idéia do autismo como uma "desordem" vai por água abaixo junto. Desordenado em comparação com qual estado de ordem, exatamente, se nos recusarmos a comprar a idéia de que há um "normal" singular e arquetipificado no qual todas as mentes devem estar em conformidade?
Sem o fictício ponto de referência de "normalidade", etiquetas de funcionamento - "autismo de alto funcionamento" e "autismo de baixo funcionamento" - também se revelam como ficções absurdas. "alto-funcionamento" ou "baixo funcionamento" em relação a quê? Quem decide qual deve ser a "função" adequada de qualquer indivíduo humano?
No paradigma da patologia, a mente neurotípica é entronizada e enaltecida como o ideal "normal", como o padrão de medição contra o qual todos os outros tipos de mentes são medidas. "Baixo funcionamento" na verdade significa “longe de se passar por neurotípico, longe de ser capaz de fazer as coisas que pessoas neurotípicas acham que toas as pessoas devem fazer, e longe de ser capaz de prosperar em uma sociedade criada por e para pessoas neurotípicas. “Alto funcionamento” significa “mais perto de se passar por neurotípico”. Descrever a si mesmo como de "alto funcionamento" é a utilização de ferramentas do mestre, é emparedar-se dentro da casa do mestre – a casa em que neurotípicos são o padrão ideal sob o qual você deve ser submedidos , uma casa em que neurotípicos estão sempre no topo, é um conceito no qual "alto-funcionamento", significa "mais próximo a eles."
Se partirmos do pressuposto de que neurotípicos são "normais", e autistas são "transtornados", logo as falhas de conexão entre pessoas neurotípicas e pessoas autistas inevitavelmente devem ser culpa de algum "defeito" ou "déficit" em pessoas autistas. Se um autista não consegue entender um neurotípico, é porque autistas têm déficits de empatia e capacidade de comunicação debilitada; e se um neurotípico não consegue entender um autista, é porque autistas têm déficits de empatia e habilidades de comunicação pobres. Todos os atritos e falhas de conexão entre os dois grupos, e todas as dificuldades que os autistas sofrem na sociedade neurotípica, tudo acaba sendo culpa do Autismo. Mas quando a nossa visão não é obscurecida pela ilusão do "normal", podemos reconhecer esse duplo padrão pelo que é, reconhecê-lo como apenas mais uma manifestação do tipo de privilégio e poder que as maiorias dominantes tantas vezes exercem sobre as minorias de qualquer ordem.

A Vida Além do Paradigma Patológico


             Uma mudança de paradigma, como você pode recordar, exige que todos os dados sejam reinterpretados através da lente do novo paradigma. Se você rejeitar as premissas fundamentais do paradigma da patologia, e aceitar as premissas do paradigma da neurodiversidade, em seguida, verifica-se que, afinal, você não tem uma desordem. E verifica-se que talvez você funcione exatamente como você deve funcionar, e que você apenas vive em uma sociedade que ainda não está suficientemente esclarecida para acomodar de forma eficaz e integrar as pessoas que funcionam como você. E que talvez os problemas em sua vida não são resultados de qualquer incorreção inerente a você. E que o seu verdadeiro potencial é desconhecido e é inteiramente seu para ser explorado e descoberto. E que talvez você seja, de fato, um ser digno e belo.

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