Humor para quem?

         A palavra “humor” provém da medicina humoral dos antigos gregos, onde o termo representava qualquer um dos quatro fluidos corporais, que deveriam estar em homeostase a fim de sustentar a relação de saúde física e emocional humana: desde sua origem etimológica, o humor é demarcado por sua aplicação prática ao bem-estar do indivíduo.
          O humor tem como função social a manifestação cômica de estados psicológicos e disposições emocionais, expandindo seu manto sobre o entendimento de culturas, costumes, religiões e comportamentos na sociedade pós-moderna. É um instrumento utilizado para fins de alívio, conforto, empoderamento. É utensílio de abertura para debate, introspecção, análise interna por meio de uma conectividade de ideais costurados por ironias, sátiras e afins, que são sustentáculos para lidar com quocientes negativos ou que necessitam de aperfeiçoamento. Não obstante, é frequentemente e cada vez mais comumente, um alicerce para chacota. Chacota aos grupos e classes sociais passíveis de fragilidade e vulnerabilidade histórica, cujos vestígios predominam atualmente não mais na violência física do passado, e sim sob o véu de um “humor” naturalizado e por vezes até institucionalizado que prega um estigma social de violência simbólica. Violência simbólica que é o gatilho por baixo dos panos para a concretização de uma violência prática e factível.
        A banalização destes atos discriminatórios legitima uma lógica de opressão estrutural acobertada pela alcunha “liberdade de expressão”. Um discurso de ódio naturalizado que estimula diretamente a desigualdade de direitos, chegando ao nível em que o direito de uns é conquistado por intermédio de lutas diárias contra preconceitos cristalizados e pré-concebidos, enquanto outros já possuem os direitos em questão, podendo assim serem chamados de privilégios. A maioria, detentora de seus privilégios sociais – o homem, o heterossexual, o branco, o magro, a classe alta – coloniza e nulifica seu próximo com a intolerância que aprendeu a sistematizar como “humor”, e por conseguinte, brandá-lo em emissoras de televisão, em violência urbana, inclusive nas salas de aula, como se não pudesse haver a possibilidade de se promover socialmente sem atingir o espaço ou a luta das minorias. Assim aponta o norte do rumo automático e robotizado que dá vazão às piadas que ferem o psicológico de mulheres, pessoas negras, gordas, sexo-diversas, pessoas com identificação de gênero fora do convencional, sujeitos deficientes -físicos ou mentais- ou portadores de transtornos psico-emocionais, indivíduos sem acesso à alfabetização ou sistema educacional que lhes garanta um futuro promissor – todos com suas identidades marginalizadas por indústrias e talk shows que disso se beneficiam, por pessoas que não têm a vivência e a sobrecarga dessas identidades em suas peles, que perpetuam e incorporam em seu cotidiano o espaço para todos estes preconceitos enrustidos de “humor”.


          O “humor” prevalece a todo custo. Ao custo de quem inclusive não possui condições de pagar por ele. O “humor” de Charlie Hebdo, de Danilo Gentilli, de Rafinha Bastos, da Porta dos Fundos, de sujeitos e articulações sociais como estes que não possuem consciência do respeito associado à equidade de classes e ao espaço de seus semelhantes – que talvez nem assim sejam nomenclaturados dentro das concepções ortodoxas, intransigentes e discriminatórias que possuem. O humor não será uma ditadura do opressor quando conjugar idiossincrasias, englobar com respeito circunstâncias pessoais e de grupos com cicatrizes históricas em suas vivências atualmente dessaudadas e desacatadas – independente de criminalizações ou leis dispostas na Constituição, e sim somente mediante o entendimento da acepção de empatia e capacidade da compreensão da situação de outrem. O humor como utensílio de abertura para debate e estrutura de empoderamento – o inverso do que ocorre – ainda submete-se às incertezas de uma construção social mais evoluída que a natural, na qual o humor não sirva apenas para quem desrespeita e ridiculariza, pois afinal, é desonestidade intelectual direcionar o humor contra a isonomia.

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